Aí eu vou misturar…

As sílabas tônicas de uma melodia conversam e reforçam o acento de uma levada, de um ritmo. Nesse sentido, uma base rítmica pode criar diferentes molduras para uma canção. Temos inúmeros exemplos de canções que foram retiradas do seu contexto original e colocadas no contexto de um outro sotaque, ou que sofreram mudança de compasso. Um exemplo clássico (um pouco besta talvez) é quando cantamos “Parabéns pra você” em ritmo de samba corrompendo totalmente o compasso ternário. Podemos perceber que o jeito de cantar e a inflexão da melodia ficam totalmente alterados. A melodia ganha uma nova acomodação num novo balanço, dentro desse novo espaço de acentuações. Este arranjo com sotaque de baião para a canção « Road to nowhere » (David Byrne) foi mais uma escolha nesse sentido para essa versão. 

Daí fiquei pensando como a música brasileira é resultado desse tipo de experimentação, desses choques de diferentes convergências, diferentes grooves, claves, acentos, sotaques… E é lindo observar como nossa cultura se expandiu a partir dessa antropofagia (nomeando uma fase importantíssima do modernismo brasileiro) até o ponto de perdermos “o fio da meada”, sermos arrebatados pela beleza e delírio que a mistura na cultura brasileira provoca. Mas sabemos que existe muita ferida por detrás da nossa miscigenação, o buraco é sempre mais embaixo e existe uma necessidade urgente de visitar estes limites.

Pensei em Jaider Esbell e sua arte ativista, suas reflexões sobre o txaísmo – “modo de tecer relações de afinidades afetivas nos circuitos interculturais das artes pautadas pelo protagonismo indígena” – e de quando visitei a sua curadoria para exposição de artistas indígenas contemporâneos no MAM exatamente na semana de sua partida em novembro de 2021. Makunaimã, a divindade indígena do tempo imemorial, acertou meu coração como uma flecha. Escrevo para não me esquecer desse arrebatamento e chamar a atenção sobre a minha total ignorância.

O livro “Makunaimã: o mito através do tempo” vai aprofundar essa reflexão e é revolucionário, porque “traz à tona vozes e visões do outro lado – o indígena – que por noventa anos esteve totalmente invisível, sendo reiteradamente desrespeitado em sua existência e em seu sagrado.”  

Esse apagamento e apropriação cultural sempre estiveram presentes na história do Brasil, e é justamente essa reflexão que me inquieta. Se, por um lado, a nossa cultura nasceu desses encontros e misturas, por outro, quantas vozes foram caladas nesse processo? Como podemos honrar e resgatar essas influências sem repetir os mesmos padrões de silenciamento e apropriação?

Todo cuidado é pouco. Quem tem chamado muito a minha atenção  sobre isso é a artista, compositora e pesquisadora Mônica Freire, através do seu trabalho sobre intersecções culturais. 

O livro de Ruy Castro “Carmen” que conta a história de Carmen Miranda, a brasileira mais famosa do século XX também traz histórias surpreendentes sobre essa questão da apropriação cultural. Atualmente esse debate está bem mais fortalecido e em pauta. Mas ainda temos muitos fios e nós para serem respectivamente identificados e desatados no emaranhado da nossa meada.

Por amor ao debate!

« Só ponho bebop no meu samba quando o tio Sam pegar no tamborim. Quando ele pegar no pandeiro e no zabumba, quando ele entender que o samba não é rumba, aí eu vou misturar Miami com Copacabana… »  – Chiclete com Banana  (Gordurinha e Almira Castilho)

No vídeo, a canção “Road to Nowhere” (David Byrne)

Lu Horta: voz, acc guitar, shaker and keyboard.

Loco Sosa (Marcelo Effori): zabumba, snare, conga, triangle, shaker, audio and video producer

João Erbetta (very special guest): baritone guitar, banjo and steel guitar.

Gravado em fev/2011 , São Paulo – estúdio Noise Factory.

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